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  • Foto do escritorBeto Ruschel

TOCA RAUL

Crônica em homenagem a todos os amigos da lida que, certamente, já passaram por situações semelhantes.


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Despejou os dedos sobre as cordas e fez soar um acorde. Um fá com as cordas soltas. Adorava o som que misturava um pouco de nostalgia e certa melancolia. O simples fato de fazer aquele som já pulsava em seu coração a vontade de escrever mais uma letra. O acorde era a senha para a próxima música daquela noite. O bar não estava tão cheio, mas havia um bom público. Todas as mesas baixas estavam ocupadas e poucas cadeiras do balcão estavam livres. Os garçons não tinham muitos minutos de sossego e o dono do estabelecimento, com seu olhar atento, exibia um sorriso discreto, porém triunfante por mais uma noite satisfatória com bons rendimentos.


E o compenetrado violeiro tocou seu acorde preferido quando, mais ou menos do lado esquerdo da plateia ecoou um pedido semi-anônimo:


- Toca Raul!


Seu transe sonoro fora interrompido e o foco na próxima canção se desfez invariavelmente. Levantou a cabeça. Deu um sorriso amarelo em direção ao público que sorriu timidamente de volta. Resolveu tomar mais um gole de água e buscar a concentração novamente. Não que precisasse extrema concentração para a música seguinte. Era uma daquelas que já fazia parte de seu repertório há anos. Todavia, tinha um carinho especial por ela e gostava de aproveitar o momento. Afinal, começava com seu acorde preferido que tantas letras já havia inspirado.


Sentindo mais uma vez a vibração de cada corda do seu violão soando em conjunto para resultar naquela maravilhosa massagem para seus ouvidos, encheu os pulmões de ar para a primeira frase e, mais uma vez, ouviu-se à esquerda da plateia:


- Toca Raul!


Agora, definitivamente incomodado, procurou identificar o autor do pedido, como se quisesse identificar sua sinceridade. Não, não era a primeira vez que alguém solicitava o roqueiro baiano durante sua performance, mas, eventualmente, esbarrava com aproveitadores que dificilmente deveriam conhecer mais do que uma canção do maluco beleza. Raulzito fazia parte de seu repertório e, não raro, tocava sem o famoso pedido. Ria quando, após tocar duas ou três, alguém surgia com o “Toca Raul”. Muitas vezes, bebendo com os amigos, tecera teorias sobre aquela repetição que perdera o seu verdadeiro significado.


- De onde será que surgiu o pedido “Toca Raul”? Quem será que começou?


Tomavam mais alguns goles e a conclusão sempre se perdia no meio das divagações. Por que será que, depois de tanto tempo, perpetua-se a ideia do “Toca Raul”? Em tempos de internet virou meme; virou piada; virou ridículo. Acreditava que, no princípio de tudo, o pedido se transformara em uma forma de protesto, porque, por muito tempo, o pai do rock brasileiro foi considerado o “patinho feio” da música brasileira. Afundado nas drogas e em seu estilo espalhafatoso sem papas na língua. Mesmo com um trabalho sólido e uma legião de fãs era renegado pela mídia.


Encontrou o autor do pedido em uma mesa com umas seis pessoas. Sorriam um sorriso etílico, comum nas noites de sábado. Encheu-se de paciência e benevolência. Calmamente falou ao microfone:


- Já toquei duas dele hoje.


E seu interlocutor replicou:


- Ah, então toca Do Fundo da Grota!



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